Que
seria de nós não fosse o deleatur?
Deleatur
(em
latim, destrua-se)
é
um sinal de revisão usado
para indicar que a letra ou a palavra
deve ser suprimida.
(Assim
descrito no livro História do Cerco de Lisboa de José
Saramago).
Dialogo
entre o Revisor e o Historiador
(Saramago,
José. História do cerco de Lisboa. São Paulo:
Companhia de Bolso. 2011, p 7-12. Diagramação Cafp)
Disse
o Revisor: Sim, o nome deste sinal é deleatur, usamo-lo quando
precisamos suprimir e apagar, a própria palavra o está a dizer, e
tanto vale para letras soltas como para palavras completas.
Disse
o Historiador: Lembra-me uma cobra que se tivesse arrependido no
momento de morder a cauda.
R
: Bem observado, senhor doutor, realmente, por muito agarrados
que estejamos a vida, até uma serpente hesitaria diante da
eternidade.
H:
Faça-me aí o desenho, mas devagar.
R:
É facílimo, basta apanhar-lhe o jeito, quem olhar distraidamente
cuidará que a mão vai traçar o terrível circulo, mas não, repare
que não rematei o movimento aqui onde o tinha começado, passei-lhe
ao lado, por dentro, e agora vou continuar para baixo ate cortar a
parte inferior da curva, afinal o que parece mesmo é a letra Q
maiúscula, nada mais.
H:
Que pena, um desenho que prometia tanto.
R:
Contentemo-nos com a ilusão da semelhança, porem, em verdade lhe
digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o
interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças.
H:
Que tem isso que ver com a revisão tipográfica.
R:
Os senhores autores vivem nas alturas, não gastam o precioso saber
em despiciências e insignificâncias, letras feridas, trocadas,
invertidas, que assim lhes classificávamos os defeitos no tempo da
composição manual, diferença e defeito, então, era tudo um.
H:
Confesso que os meus deleatures são menos rigorosos, um rabisco
dá-me para tudo, confio-me a sagacidade dos tipógrafos, essa tribo
colateral da edípica e celebrada família dos farmacêuticos,
capazes ate de decifrar o que nem chegou a ser escrito
R:
E depois os revisores que acudam a resolver os problemas.
H:
Sois nossos anjos-da-guarda, a vos nos confiamos, você, por exemplo,
traz--me a lembrança a minha estremosa mãe, que me fazia e tornava
a fazer a risca do cabelo até ficar como traçada a tira linhas.
R:
Obrigado pela comparação, mas, se a sua mãezinha já morreu,
valia-lhe a pena agora aperfeiçoar-se por sua conta, sempre chega o
dia em que é preciso corrigir mais no profundo
H:
Corrigir, corrijo eu, mas as piores dificuldades resolvo-as à
maneira expedita, escrevendo uma palavra por cima de outra.
R:
Tenho reparado.
H:
Não o diga nesse tom, dentro do que cabe faço o que posso, e quem
consegue fazer o que pode...
R:
A mais não estará obrigado, sim senhor, sobretudo, como é o
seu caso, quando falta o gosto da modificação, o prazer da mudança,
o sentido da emenda,
H:
Os autores emendam sempre, somos os eternos insatisfeitos.
R:
Nem têm outro remédio, que a perfeição tem exclusiva morada no
reino dos céus, mas o emendar dos autores é outro, problemático,
muito diferente deste nosso.
H:
Quer você dizer na sua que a seita revisora gosta do que faz?
R:
Tão longe não ouso ir, depende da vocação, e revisor de vocação
é fenômeno desconhecido, no entanto, o que parece demonstrado é
que, no mais secreto das nossas almas secretas, nós, revisores,
somos voluptuosos.
H:
Essa nunca eu tinha ouvido.
R:
Cada dia traz sua alegria e sua pena, e também sua lição
proveitosa.
H:
É por experiência que fala?
R:
Refere-se à lição?
H:
Refiro-me à volúpia.
R:
Claro que falo por experiência própria, alguma haveria eu de ter,
que é que julga, mas igualmente tenho beneficiado da observação
dos comportamentos alheios, que é ciência moral não menos
edificadora.
H:
Certos autores do passado, se os julgarmos por esse seu critério,
seriam gente da espécie, revisores magníficos, estou a lembrar-me
das provas revistas pelo Balzac, um deslumbramento pirotécnico de
correções e aditamentos.
R:
O mesmo fazia o nosso Eça doméstico, para que não fique sem menção
um exemplo pátrio.
H:
Agora me ocorre que tanto o Eça como o Balzac se sentiriam os mais
felizes dos homens, nos tempos de hoje, diante de um computador,
interpolando, transpondo, recorrendo linhas, trocando capítulos.
R:
E nós, leitores, nunca saberíamos por que caminhos eles andaram e
se perderam antes de alcançarem a definitiva forma, se existe tal
coisa.
H:
Ora, ora, o que conta é o resultado, não adianta nada conhecer os
tenteios e hesitações de Camões e Dante.
R:
O senhor doutor é um homem prático, moderno, já está a viver no
século vinte e dois.
H:
Diga-me cá, os outros sinais, também levam nomes latinos, como o
deleatur?
R:
Se os levam, ou levaram, não sei, não estou habilitado, talvez
fossem tão difíceis de pronunciar que se perderam.
H:
Na noite dos tempos?
R:
Desculpar-me-á se o contradigo, mas eu não empregaria a frase.
H:
Calculo que por ser lugar-comum.
R:
Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, os
narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e provérbios,
tudo pode aparecer como novidade, a questão está só em saber
manejar adequadamente as palavras que estejam antes e depois.
H:
Então por que não diria você noite dos tempos?
R:
Porque os tempos deixaram de ser noite de si mesmos quando as
pessoas começaram a escrever, ou a emendar, torno a dizer, que é
obra doutro requinte e outra transfiguração
H:
Gosto da frase.
R:
Eu também, principalmente porque é a primeira vez que a digo, à
segunda vez terá menos graça.
H:
Ter-se-á tornado em lugar-comum.
R:
Ou tópico, que é vocábulo erudito.
H:
Creio perceber nas suas palavras uma certa amargura céptica.
R:
Vejo-a mais como um cepticismo amargo.
H:
Quem diz uma coisa, diz outra.
R:
Mas não dirá o mesmo, os autores costumavam ter bom ouvido para
estas diferenças.
H:
Talvez se me estejam a endurecer os tímpanos.
R:
Desculpe, foi sem intenção.
H:
Não sou susceptível, adiante, diga-me antes por que se sente assim
amargo, ou céptico, como queira.
R:
Considere, senhor doutor, a vida quotidiana dos revisores, pense
na tragédia de terem de ler uma vez, duas, três, ou quatro, ou
cinco vezes, livros que...
H:
Provavelmente, nem uma só vez o mereceriam.
R:
Fique registado que não fui eu quem proferiu tão gravosas
palavras, conheço muito bem o meu lugar na sociedade das letras,
voluptuoso, sim, confesso-o, mas respeitador.
H:
Não vejo onde esteja essa terribilidade, aliás parecia-me a
conclusão óbvia da sua frase, aquela eloquente suspensão, apesar
de não se lhe verem as reticências
R:
Se quer saber, vá aos autores, provoque-os com o meio dito meu e
o meio dito seu, e verá como eles lhe respondem com o aplaudido
apólogo de Apeles e o sapateiro, quando o operário apontou o erro
na sandália duma figura e depois, tendo verificado que o artista
emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre a anatomia
do joelho
H:
Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe disse Não
suba o sapateiro acima da chinela, frase histórica.
R:
Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro do quintal.
H:
Neste caso, o Apeles tinha razão.
R:
Talvez, mas só enquanto não viesse examinar a pintura um sábio
anatomista
H:
Você é definitivamente céptico.
R:
Todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapateiro é a
mais comum entre os humanos, enfim, só o revisor aprendeu que o
trabalho de emendar é o único que nunca se acabará no mundo.
H:
Tem sentido muitas tentações de sapateiro na revisão do meu livro.
R:
A idade traz-nos uma coisa boa que é uma coisa má, acalma-nos, e as
tentações, mesmo quando são imperiosas, tornam-se menos urgentes.
H:
Por outras palavras, vê o defeito da chinela, mas cala-se.
R:
Não, o que eu deixo passar é o erro do joelho.
H:
Gosta do livro?
R:
Gosto.
H:
Di-lo com pouquíssimo entusiasmo.
R:
Também não o notei na sua pergunta.
H:
Questão de táctica, o autor, ainda que muito lhe custe, deve exibir
alguns ares de modéstia.
R:
Modesto sempre o revisor terá de ser, e, se lhe deu um dia para ser
imodesto, com isso se obrigou a ser, em figura humana, a suma
perfeição.
H:
Não reviu a frase, três vezes a palavra ser num fôlego só, é
imperdoável, concorde.
R:
Deixe ficar a chinela, a falar tudo se desculpa.
H:
Pois, mas não lhe perdoo a avareza da opinião.
R:
Recordo-lhe que os revisores são gente sóbria, já viram muito
de literatura e vida.
H:
O meu livro, recordo-lho eu, é de história.
R:
Assim realmente o designariam segundo a classificação tradicional
dos gêneros, porém, não sendo propósito meu apontar outras
contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo
quanto não for vida, é literatura.
H:
A história também?
R:
A história sobretudo, sem querer ofender.
H:
E a pintura, e a música?
R:
A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer
livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à
obediência
H:
E a pintura?
R:
Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis.
H:
Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a
pintar muito antes de saber escrever.
R:
Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, por outras
palavras, quem não pode escrever pinta, ou desenha, é o que fazem
as crianças.
H:
O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já
existia antes de ter nascido?
R:
Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o
era.
H:
Parece-me um ponto de vista bastante original.
R:
Não o creia, senhor doutor, o rei Salomão, que há tanto tempo
viveu, já então afirmava que não havia nada de novo debaixo da
rosa do sol, ora, quando naquelas épocas recuadas assim o
reconheciam, o que não diremos hoje, trinta séculos passados, se a
mim não me falha agora a memória da enciclopédia.
H:
É curioso, eu, e mais sou historiador, não me lembraria, se
perguntado de repente, que tivesse sido há tantos anos.
R:
E o que tem o tempo, corre e não damos por ele, está uma pessoa por
aí ocupada nos seus quotidianos, subitamente cai em si e exclama,
meu Deus como o tempo passa, ainda agora estava o rei Salomão vivo e
já lá vão três mil anos.
H:
Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser filósofo,
ou historiador, tem o alarde e a pinta que tais artes requerem.
R:
Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem
fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a
genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois
não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas.
H:
Podia apresentar-se como autodidata, produto do seu próprio e digno
esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha
orgulho nos seus autodidatas.
R:
Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidatas são
vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para
distrair é que estão autorizados a ser e a continuar a ser
autodidatas, sorte deles, mas eu, confesso-lhe, para a criação
literária nunca tive jeito.
H:
Meta-se a filósofo, homem!
R:
O senhor doutor é um humorista de finíssimo espírito, cultiva
magistralmente a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à
história, sendo ela grave e profunda ciência.
H:
Sou irônico apenas na vida real.
R:
Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real,
literatura, sim, e nada mais.
H:
Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não poderia
chamar-se-lhe história.
R:
Tem a certeza, senhor doutor?
H:
Na verdade, você é uma interrogação com pernas e uma dúvida com
braços.
R:
Não me falta mais que a cabeça.
H:
Cada coisa a seu tempo, o cérebro foi a última coisa a ser
inventada.
R:
O senhor doutor é um sábio.
H:
Meu caro amigo, não exagere.
R:
Quer ver as últimas provas?
H:
Não vale a pena, as correções de autor estão feitas, o resto é a
rotina da revisão final, fica nas suas mãos.
R:
Obrigado pela confiança.
H:
Muito merecida.
R:
Então senhor doutor acha que a história é a vida real?
H:
Acho, sim.
R:
Que a história foi vida real, quero dizer.
H:
Não tenha a menor dúvida.
R:
Que seria de nós se não existisse o deleatur (suspirou o
revisor).