quarta-feira, 17 de outubro de 2012


Que seria de nós não fosse o deleatur?

Deleatur (em latim, destrua-se)
é um sinal de revisão usado para indicar que a letra ou a palavra
deve ser suprimida.

(Assim descrito no livro História do Cerco de Lisboa de José Saramago).

Dialogo entre o Revisor e o Historiador

(Saramago, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia de Bolso. 2011, p 7-12. Diagramação Cafp)

Disse o Revisor: Sim, o nome deste sinal é deleatur, usamo-lo quando precisamos suprimir e apagar, a própria palavra o está a dizer, e tanto vale para letras soltas como para palavras completas.

Disse o Historiador: Lembra-me uma cobra que se tivesse arrependido no momento de morder a cauda.

R : Bem observado, senhor doutor, realmente, por muito agarrados que estejamos a vida, até uma serpente hesitaria diante da eternidade.

H: Faça-me aí o desenho, mas devagar.

R: É facílimo, basta apanhar-lhe o jeito, quem olhar distraidamente cuidará que a mão vai traçar o terrível circulo, mas não, repare que não rematei o movimento aqui onde o tinha começado, passei-lhe ao lado, por dentro, e agora vou continuar para baixo ate cortar a parte inferior da curva, afinal o que parece mesmo é a letra Q maiúscula, nada mais.

H: Que pena, um desenho que prometia tanto.

R: Contentemo-nos com a ilusão da semelhança, porem, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças.

H: Que tem isso que ver com a revisão tipográfica.

R: Os senhores autores vivem nas alturas, não gastam o precioso saber em despiciências e insignificâncias, letras feridas, trocadas, invertidas, que assim lhes classificávamos os defeitos no tempo da composição manual, diferença e defeito, então, era tudo um.

H: Confesso que os meus deleatures são menos rigorosos, um rabisco dá-me para tudo, confio-me a sagacidade dos tipógrafos, essa tribo colateral da edípica e celebrada família dos farmacêuticos, capazes ate de decifrar o que nem chegou a ser escrito

R: E depois os revisores que acudam a resolver os problemas.

H: Sois nossos anjos-da-guarda, a vos nos confiamos, você, por exemplo, traz--me a lembrança a minha estremosa mãe, que me fazia e tornava a fazer a risca do cabelo até ficar como traçada a tira linhas.

R: Obrigado pela comparação, mas, se a sua mãezinha já morreu, valia-lhe a pena agora aperfeiçoar-se por sua conta, sempre chega o dia em que é preciso corrigir mais no profundo

H: Corrigir, corrijo eu, mas as piores dificuldades resolvo-as à maneira expedita, escrevendo uma palavra por cima de outra.

R: Tenho reparado.

H: Não o diga nesse tom, dentro do que cabe faço o que posso, e quem consegue fazer o que pode...

R: A mais não estará obrigado, sim senhor, sobretudo, como é o seu caso, quando falta o gosto da modificação, o prazer da mudança, o sentido da emenda,

H: Os autores emendam sempre, somos os eternos insatisfeitos.

R: Nem têm outro remédio, que a perfeição tem exclusiva morada no reino dos céus, mas o emendar dos autores é outro, problemático, muito diferente deste nosso.

H: Quer você dizer na sua que a seita revisora gosta do que faz?

R: Tão longe não ouso ir, depende da vocação, e revisor de vocação é fenômeno desconhecido, no entanto, o que parece demonstrado é que, no mais secreto das nossas almas secretas, nós, revisores, somos voluptuosos.

H: Essa nunca eu tinha ouvido.

R: Cada dia traz sua alegria e sua pena, e também sua lição proveitosa.

H: É por experiência que fala?

R: Refere-se à lição?

H: Refiro-me à volúpia.

R: Claro que falo por experiência própria, alguma haveria eu de ter, que é que julga, mas igualmente tenho beneficiado da observação dos comportamentos alheios, que é ciência moral não menos edificadora.

H: Certos autores do passado, se os julgarmos por esse seu critério, seriam gente da espécie, revisores magníficos, estou a lembrar-me das provas revistas pelo Balzac, um deslumbramento pirotécnico de correções e aditamentos.

R: O mesmo fazia o nosso Eça doméstico, para que não fique sem menção um exemplo pátrio.

H: Agora me ocorre que tanto o Eça como o Balzac se sentiriam os mais felizes dos homens, nos tempos de hoje, diante de um computador, interpolando, transpondo, recorrendo linhas, trocando capítulos.

R: E nós, leitores, nunca saberíamos por que caminhos eles andaram e se perderam antes de alcançarem a definitiva forma, se existe tal coisa.

H: Ora, ora, o que conta é o resultado, não adianta nada conhecer os tenteios e hesitações de Camões e Dante.

R: O senhor doutor é um homem prático, moderno, já está a viver no século vinte e dois.

H: Diga-me cá, os outros sinais, também levam nomes latinos, como o deleatur?

R: Se os levam, ou levaram, não sei, não estou habilitado, talvez fossem tão difíceis de pronunciar que se perderam.

H: Na noite dos tempos?

R: Desculpar-me-á se o contradigo, mas eu não empregaria a frase.

H: Calculo que por ser lugar-comum.

R: Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e provérbios, tudo pode aparecer como novidade, a questão está só em saber manejar adequadamente as palavras que estejam antes e depois.

H: Então por que não diria você noite dos tempos?

R: Porque os tempos deixaram de ser noite de si mesmos quando as pessoas começaram a escrever, ou a emendar, torno a dizer, que é obra doutro requinte e outra transfiguração

H: Gosto da frase.

R: Eu também, principalmente porque é a primeira vez que a digo, à segunda vez terá menos graça.

H: Ter-se-á tornado em lugar-comum.

R: Ou tópico, que é vocábulo erudito.

H: Creio perceber nas suas palavras uma certa amargura céptica.

R: Vejo-a mais como um cepticismo amargo.

H: Quem diz uma coisa, diz outra.

R: Mas não dirá o mesmo, os autores costumavam ter bom ouvido para estas diferenças.

H: Talvez se me estejam a endurecer os tímpanos.

R: Desculpe, foi sem intenção.

H: Não sou susceptível, adiante, diga-me antes por que se sente assim amargo, ou céptico, como queira.

R: Considere, senhor doutor, a vida quotidiana dos revisores, pense na tragédia de terem de ler uma vez, duas, três, ou quatro, ou cinco vezes, livros que...

H: Provavelmente, nem uma só vez o mereceriam.

R: Fique registado que não fui eu quem proferiu tão gravosas palavras, conheço muito bem o meu lugar na sociedade das letras, voluptuoso, sim, confesso-o, mas respeitador.

H: Não vejo onde esteja essa terribilidade, aliás parecia-me a conclusão óbvia da sua frase, aquela eloquente suspensão, apesar de não se lhe verem as reticências

R: Se quer saber, vá aos autores, provoque-os com o meio dito meu e o meio dito seu, e verá como eles lhe respondem com o aplaudido apólogo de Apeles e o sapateiro, quando o operário apontou o erro na sandália duma figura e depois, tendo verificado que o artista emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre a anatomia do joelho

H: Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe disse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histórica.

R: Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro do quintal.

H: Neste caso, o Apeles tinha razão.

R: Talvez, mas só enquanto não viesse examinar a pintura um sábio anatomista

H: Você é definitivamente céptico.

R: Todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapateiro é a mais comum entre os humanos, enfim, só o revisor aprendeu que o trabalho de emendar é o único que nunca se acabará no mundo.

H: Tem sentido muitas tentações de sapateiro na revisão do meu livro.

R: A idade traz-nos uma coisa boa que é uma coisa má, acalma-nos, e as tentações, mesmo quando são imperiosas, tornam-se menos urgentes.

H: Por outras palavras, vê o defeito da chinela, mas cala-se.

R: Não, o que eu deixo passar é o erro do joelho.

H: Gosta do livro?

R: Gosto.

H: Di-lo com pouquíssimo entusiasmo.

R: Também não o notei na sua pergunta.

H: Questão de táctica, o autor, ainda que muito lhe custe, deve exibir alguns ares de modéstia.

R: Modesto sempre o revisor terá de ser, e, se lhe deu um dia para ser imodesto, com isso se obrigou a ser, em figura humana, a suma perfeição.

H: Não reviu a frase, três vezes a palavra ser num fôlego só, é imperdoável, concorde.

R: Deixe ficar a chinela, a falar tudo se desculpa.

H: Pois, mas não lhe perdoo a avareza da opinião.

R: Recordo-lhe que os revisores são gente sóbria, já viram muito de literatura e vida.

H: O meu livro, recordo-lho eu, é de história.

R: Assim realmente o designariam segundo a classificação tradicional dos gêneros, porém, não sendo propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura.

H: A história também?

R: A história sobretudo, sem querer ofender.

H: E a pintura, e a música?

R: A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência

H: E a pintura?

R: Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis.

H: Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever.

R: Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, por outras palavras, quem não pode escrever pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças.

H: O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido?

R: Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era.

H: Parece-me um ponto de vista bastante original.

R: Não o creia, senhor doutor, o rei Salomão, que há tanto tempo viveu, já então afirmava que não havia nada de novo debaixo da rosa do sol, ora, quando naquelas épocas recuadas assim o reconheciam, o que não diremos hoje, trinta séculos passados, se a mim não me falha agora a memória da enciclopédia.

H: É curioso, eu, e mais sou historiador, não me lembraria, se perguntado de repente, que tivesse sido há tantos anos.

R: E o que tem o tempo, corre e não damos por ele, está uma pessoa por aí ocupada nos seus quotidianos, subitamente cai em si e exclama, meu Deus como o tempo passa, ainda agora estava o rei Salomão vivo e já lá vão três mil anos.

H: Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser filósofo, ou historiador, tem o alarde e a pinta que tais artes requerem.

R: Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas.

H: Podia apresentar-se como autodidata, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidatas.

R: Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidatas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser e a continuar a ser autodidatas, sorte deles, mas eu, confesso-lhe, para a criação literária nunca tive jeito.

H: Meta-se a filósofo, homem!

R: O senhor doutor é um humorista de finíssimo espírito, cultiva magistralmente a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela grave e profunda ciência.

H: Sou irônico apenas na vida real.

R: Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais.

H: Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não poderia chamar-se-lhe história.

R: Tem a certeza, senhor doutor?

H: Na verdade, você é uma interrogação com pernas e uma dúvida com braços.

R: Não me falta mais que a cabeça.

H: Cada coisa a seu tempo, o cérebro foi a última coisa a ser inventada.

R: O senhor doutor é um sábio.

H: Meu caro amigo, não exagere.

R: Quer ver as últimas provas?

H: Não vale a pena, as correções de autor estão feitas, o resto é a rotina da revisão final, fica nas suas mãos.

R: Obrigado pela confiança.

H: Muito merecida.

R: Então senhor doutor acha que a história é a vida real?

H: Acho, sim.

R: Que a história foi vida real, quero dizer.

H: Não tenha a menor dúvida.

R: Que seria de nós se não existisse o deleatur (suspirou o revisor).

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